A três meses das próximas eleições presidenciais na Bolívia, Álvaro García Linera, 62, afirma que o MAS (Movimento ao Socialismo) perdeu sua hegemonia ao se dividir entre Evo Morales e o atual presidente, Luis Arce.
Linera declara seu apoio ao ex-presidente, embora reconheça que este já ultrapassou os limites constitucionais para novas candidaturas, e defende que a esquerda latino-americana se atualize, abandonando as fórmulas da era da “maré vermelha”, quando o boom das commodities favoreceu os projetos redistributivos da região.
Em entrevista à Folha por ocasião do lançamento do livro “La Democracia Como Agravio“ (Clacso), traduzível como “A Democracia como Reclamação”, em Buenos Aires, García Linera fala da perda de espaço da esquerda na região.
Gostaria de falar sobre “La Democracia Como Agravio”, que acaba de sair na Argentina. Nele, o senhor diz que a democracia liberal se transformou em um formato político servil ao neoliberalismo. Poderia explicar melhor esse conceito?
Sim, o exemplo disso é praticamente toda a América Latina entre os anos 1980 e os anos 2000. Toda a América Latina associou livre comércio com democracia liberal. O mundo ia nessa direção, e não parecia haver outra opção.
Os estatismos desenvolvimentistas dos anos 1950 e 1960 não puderam nunca resolver problemas novos, e então parecia que a única estrada era a do livre comércio. A fórmula era: livre comércio, abertura, globalização, redução do Estado associada à democracia liberal de um país.
E isso funcionou na medida em que todas as forças políticas e as elites políticas convergiram. Havia uma espécie de homogeneidade discursiva no que diz respeito ao destino dos países, do mundo, da economia, de seleção de elites que convergem em torno a um objetivo comum. Creio que quem resumiu isso bem foi Francis Fukuyama quando falou do “fim da história”.
Só que já se passaram mais de 40 anos do tal “fim da história”, e o que fizemos, então? Creio que o que aconteceu no mundo em 2008 com a crise já tinha se adiantado na América Latina por uma década. Aí tivemos crescimento muito baixo, problemas de mal-estar social, promessas sociais que não se cumpriram e que mais parecia que íamos para trás. Isso se mostrou muito forte no continente e esse é o espaço que deu lugar aos progressistas.
Foi nessa época que também na Bolívia vocês começaram a se organizar.
Sim, sem a crise econômica do fim dos anos 1990, não haveria espaço para o progressismo em nosso país, as pessoas não iam achar que era necessário. Porque o modelo aparentemente funcionava. Quando os modelos não funcionam, propostas marginais que vivem nos interstícios da ordem social começam a ter audiência.
E o modelo econômico globalista de livre mercado, de privatização, em toda a América Latina, sem exceção, começou a mostrar os problemas, as limitações, a gerar mal-estar, frustração coletiva, e quando há mal-estar e frustração coletiva ocorrem duas coisas: as elites divergem e emergem os progressistas, como uma espécie de força que poderia controlar todo o ciclo liberal.
Como definiria o caso da Bolívia nos dias de hoje?
Há uma reação contra a redistribuição da riqueza e da mobilidade social. Cerca de 30% da população, majoritariamente indígena, sai da pobreza, passa a integrar a classe média e acaba retirando os privilégios de renda e status das escolas tradicionais. Isso é brutal. E essa classe reage.
E qual a diferença do tempo da primeira ‘maré vermelha’ e hoje?
Hoje não sabemos debater. Temos um progressismo apático, que só se recorda das coisas boas que fez —e sim, fizemos coisas boas—, mas que já não são suficientes. As novas circunstâncias exigem mais, e essas conquistas não bastam para a situação atual. É preciso pensar em como impulsionar novas reformas.
Como vê a Bolívia neste momento, com essa polarização interna dentro do próprio MAS (Movimento ao Socialismo)?
O que acontece na Bolívia é um problema de toda a América Latina. Não estamos mais entendendo o fim da primeira fase do progressismo, que foi até 2019. Agora é preciso produzir uma outra fase, outro ciclo de reformas, outras alianças políticas adequadas às novas circunstâncias e outros discursos adequados às novas circunstâncias dos países. Por que o progressismo mudou a Bolívia. A Bolívia é o exemplo mais claro de inclusão social e étnica da primeira onda do progressismo. Mas não entendemos que a situação mudou. E continuamos debatendo questões como se estivéssemos nos anos 2005.
Então temos agora a situação em que Luis Arce, que não tomou uma série de medidas que eram necessárias para esse novo momento, criou uma crise devastadora. Foi um governo que se mostrou parado no tempo, que não fez as reformas necessárias. Agora temos o que temos: um país que não encontra dólares, não explora seu lítio e não melhorou o padrão de vida da população. O salário real das pessoas diminuiu de US$ 350 (R$ 1.900) para US$ 180 (R$ 1.000).
É uma disputa que divide e não constrói.
Lamentável. Sim. Nessa disputa, está claro que quem está melhor posicionado é Evo, porque ainda carrega consigo a lembrança dos bons tempos de suas primeiras gestões. Luis [Arce], por outro lado, tem contra si uma gestão econômica muito ruim. E a briga entre os dois acentuou ainda mais um retrocesso social no projeto nacional-popular.
Hoje em dia, dizer que o Estado deve administrar as riquezas estratégicas, que há dez anos era senso comum, virou algo contestado. Agora dizem que o Estado é um mau administrador. Mas veja bem, não há gasolina, não há dólares. Dizem que é preciso privatizar tudo, cortar os subsídios, e muita gente responde: “Talvez seja o melhor”. O nacional-popular, que foi hegemônico por pelo menos 15 ou 20 anos, já não é. Hoje é uma minoria — a primeira minoria. É um momento muito complicado para o MAS, e a possibilidade de uma vitória das forças conservadoras em agosto é muito alta.
O senhor continua apostando nas possibilidades de Evo Morales?
Evo ainda tem muito poder. Ele concentra a memória dos êxitos do passado popular, mas já não carrega uma maioria hegemônica. Esse é o problema atual do progressismo na Bolívia. A reconciliação entre Evo e Luis parece impossível —e até desnecessária, pois Evo não ganharia nada com isso. Se fizesse isso, deixaria de ser uma força de pressão. Mesmo assim, ele ainda apoia Luis formalmente. Mas, olhando para o futuro, Luis já não é uma alternativa. É um candidato esvaziado [Arce anunciou que não deve concorrer à reeleição]. Essas brigas internas, somadas à crise econômica, fizeram com que o nacional-popular deixasse de ser maioria. Agora é uma minoria.
Como vê a corrida eleitoral daqui até agosto?
Dependendo de como isso for gerido, pode até se chegar a um segundo turno. Estão surgindo dois caminhos: um é insistir na candidatura de Evo, apesar de toda a oposição institucional que ele enfrenta. Se não aceitarem sua candidatura, será necessário ver a quem ele indicará.
Andrónico Rodríguez [presidente do Senado], talvez?
Era o que se pensava no ano passado, mas agora também há disputas entre eles. Talvez Andrónico siga sozinho, à margem de Evo. Do ponto de vista jornalístico, ele é um personagem interessante. Mas, se houver dois candidatos —Evo e Andrónico—, o campo popular se divide. E é provável que nem cheguem ao segundo turno.
Raio-X | Álvaro García Linera, 62
Formado em matemática pela Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), foi vice-presidente da Bolívia durante os 14 anos de governo de Evo Morales, entre 2006 e 2019. Antes disso, teve passagem por uma guerrilha indigenista e foi preso nos anos 1990, durante o governo de Jaime Paz Zamora. Hoje, combina sua trajetória política com atuação acadêmica, ministrando aulas em universidades da Bolívia e da Argentina.